Pérfido Lusitano

quarta-feira, abril 28, 2004

Sobre tolerância e bom humor, ou Sermão aos peixes das letras.

Quem escreve para o público só se pode assumir duas posições depois de o texto estar escrito e de ter sido lido: o recebe as críticas e os comentários, quaisquer que eles sejam, independentemente do seu teor; ou se fecha na sua concha e deixa o texto e as ideias nele contidas completamente órfãos.

A segunda hipótese é a mais segura e confortável. Eu escrevi um texto, até mo deixaram publicar (num blogue, num jornal, em livro, seja onde for!), e agora as pessoas vão lê-lo. Pronto, está feito! As minhas ideias passaram para o papel, e mais nada. Que posição confortável! Uma verdadeira ostra nas profundezas do mar que acha que deu ao mundo uma pérola. Sim, porque quem quer que seja, quando se acaba de escrever um texto tem-se sempre a impressão de que tudo está dito, e de que o que acabámos de defender pela palavra é a única visão do mundo possível.

O problema é quando a “pérola” começa a ser vista pelos outros peixes.

Reparemos que para um tubarão uma pérola largada por uma pequena ostra no fundo do mar não tem interesse nenhum, senão para palitar as centenas de dentes.

Do ponto de vista do espadarte ou do peixe-agulha, uma pérola poderá ser um acarinhado objecto de tentativas circences de equilíbrio na ponta do nariz. Talvez seja também visto como um possível desafio.

Para uma recatada carpa de aquário, uma pérola poderá ser uma bola, elemento que servirá para quebrar a monotonia gélida de um aquário ao mesmo tempo que divertirá durante umas horas.

Para o carapau e para a sardinha, uma pérola é apenas um ponto luminoso no fundo do mar. Dá para comer? Não, então para que serve?

Para um pesado e pachorrento bacalhau, uma pérola será um objecto odiado. Dizem ser mais bonito do que as minhas “caras” e isso produz inveja. Pudesse o bacalhau partir a pérola e seria um peixe muito mais feliz. Ou então, que a pudesse produzir para se sentir importante!

Para a baleia, uma pérola mais não é do que um camarão com casca mais dura que se morde, ou dias mais tarde um cagalhão duro de cagar, ou, com azar, uma pedra nos rins.

Tal como uma pérola, um texto pode ser muita coisa. Depende sempre do ponto de vista de quem o vê, perdão, de quem o lê.

Se formos tubarões ou baleias passamos pelos textos e nem os lemos. Talvez só na transversal, para não perder tempo. Embora, algum tempo depois, provavelmente quando estivermos deprimidos ou importunados com qualquer coisa, lá iremos ler um livrinho, ou interpretar um textinho que diga como se pode viver melhor, ou que simplesmente alerte para os problemas sociais e individuais.

Se adoptarmos a postura de um bacalhau, provavelmente lemos alguns textos, mas dizemos sempre: eu faria muito melhor! – embora, interiormente tenhamos a consciência da mentira que isso é. Ou então, perante a constatação das nossas limitações, mas orientados por uma inveja cega, criticaríamos e insultaríamos o texto e o seu autor.

A postura de uma sardinha ou de um carapau é a mais assumida em Portugal, e talvez no mundo, infelizmente: texto? O que é isso?

A postura da carpa é equilibrada, uma vez que se diverte com um texto, mas não o leva demasiado a sério. Por outras palavras, diverte-se, brinca com o texto, e não lhe passa pela cabeça censurar a pérola ou a ostra.

A perspectiva do peixe-agulha também é semelhante e recomendável: é que um texto pode ser instrutivo, sem dúvida, mas antes de mais deve ser elemento de prazer e divertimento. Se não, não tem razão de existir.

Independentemente do tipo de peixe que você é, perdão, de pessoa, da próxima vez dedicar uns minutos à leitura de um textozinho, seja neste blogue, seja noutra sítio qualquer, veja se consegue fazer como a o espadarte e se diverte com o texto, ou, melhor ainda, como a carpa e joga o jogo que é a literatura, entende-o, percebe o texto como algo diferente do seu autor respeitando ambos.

Ah, e evite ser uma baleia velha qualquer e menos ainda um estúpido bacalhau seco sem espírito tolerante e sem humor.

Falta ainda falar da primeira postura, aquela do primeiro parágrafo do texto – vá lá reler, sff, que eu espero.

Já está? Óptimo!

Ora bem, quem escreve deve estar preparado par ser criticado, se não, mais valia estar quieto.

Qualquer indivíduo que sente vontade ou mesmo necessidade de escrever tem algo para dizer. Ao dizê-lo há que respeitá-lo por isso e ouvi-lo com paciência para perceber qual o seu ponto de vista. No entanto, o que importa perceber e me parece mesmo fundamental explicar é que nós só lemos textos e não pessoas, ou seja, só lemos as ideias que saíram de uma pessoa para o papel, não as ideias da própria pessoa.

Parece confuso? O que estou a tentar dizer é que quando se escreve um texto as ideias nele contidas valem por elas próprias. Assim, quando se critica um texto – seja com comentários menos abonatórios, seja com correcções linguísticas – não se está a fazer nenhum ataque pessoal, muito menos a ofender a inteligência de ninguém.

O que se está a fazer é a dialogar com o texto, com os seus sinais, com a semiótica interna do que foi escrito, e nunca com a pessoa que o escreveu.

No entanto, é claro que o autor pode e deve ser interrogado sobre o que escreveu. E é aí que está o busílis: há quem aceite essas interrogações, esses reparos, essas críticas, e até essas ridicularizações. Eu julgo que isso deve fazer parte de um autor.

Mas também há quem não aceite o mínimo reparo, ou outros pontos de vista, ou até ironias jocosas.

Em resumo e para meditar, parece-me que tudo é texto, tudo é criticável, excepto o autor, a pessoa. A questão é saber se se percebe isso, ou seja, se quem escreve está pronto para ver o seu textozinho, a sua bela pérola, ser criticada, dilacerada, estrilhaçada, arrasada ou outras coisas piores.

Espero que estejam.